quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Cansa-me essa gente reta
Que se julga profeta
Fala pelo costume e moral
Põe, ela, o dedo em riste
Aponta o certo, o belo, o triste
Tem o peso do bem e do mal

Pra toda estrada, o Norte
Pra toda vida, uma fôrma
Pra todo poema, soneto
Pra toda prosa, chatice

Gente certa demais
Não sabe aonde vai
Porque importa é a marcha
Importante é o jeito
Acaba voltando pra trás
Muito além de onde veio

Enjoa-me a exatidão de postura
Gente relógio que não perde compasso
Não titubeia nem erra de lado
Fazendo crer que a vida é um tanto mais dura

Mal sabem esse pobres quadrados

Que não se dança uma valsa sem balanceio
Às sextas-feiras é muito fácil amar
É a hora que a vida para e respira
Os amigos entram em casa
A boemia embala os afetos
E o amor entra sem força

Quero que faça de mim é sua terça
Quando, mesmo sem tempo
Ainda me tenha um minuto
E enquanto o compromisso clama
Seja eu seu cotidiano

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Deixa eu contar sobre a chuva.


Eu vi o cheiro de chuva calma chegar, enquanto ouvi todas as suas inúmeras cores altas curvarem-se para passar pela porta do meu caos particular.
Senti da boca que você trouxe aquela hora a leveza que é sonhar fora dos dias úteis.
A anarquia doutrinadamente ensandecida da sociedade pequena de repente não chegava até nós.

As calhas se enchiam vagarosamente de água e os passarinhos se guardavam sabe-se lá onde ficam quando começa a chover.
O dia se fez estranhamente bonito e melancólico, sendo os pingos agudos da bica os únicos inconvenientes a cortar o silêncio morno que construíamos desde sua chegada.
Era dia de semana de algum feriado santo, ou qualquer outro escapismo do cotidiano homicida que o indivíduo médio precisa pra enlouquecer um pouco mais tarde.
Ninguém saíra de casa. Sobrava o mundo todo lá fora pra nós que, petulantes, não o queríamos aquele instante.
Eram peitos, barrigas, joelhos valsantes e línguas demais para nos dedicarmos a outra coisa que não nós mesmos.
Caía um copo cheio no carpete, que agora encharcado, ficava frio e trazia algo lá de fora pra cá, pro nosso canto imaculado. A única frieza ali era o carpete. A única tristeza ali era o carpete.

Nos almoçamos sem fazermos as orações que aprendemos nas refeições de família cristã, como quem tem pressa de saciar a fome de dias.
Ela me toma como vinho caro. Sinto-me, então, mais requintado que sou.
Eu, por minha vez, como com as mãos os seus suculentos nacos de carne. Da classe que não tenho, ela não precisa.
Era tudo gratuito e permitido.
Nos saciamos. Nos bendizemos.

Agora era a tarde que vinha chegando, rareando a chuva, ligando o canto dos pássaros outra vez, fazendo correr as horas que conseguimos parar um momento, e vertendo o calor do nosso quarto para um tanto além dele.

Mas nenhum de nós lamentava. Abrir aquela redoma de encanto era mesmo preciso, para que assim a reconstruíssemos de jeitos inéditos. Além do mais, outra chuva sempre vem e nós já sabemos para onde o sol vai nessa hora: pro único lugar quente, que só nós sabemos fazer.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Eu lhe convido a fazer de alguns amanhãs um hoje também.


Eu lhe convido à tarde quente que esse céu azul real trouxe pra gente
Deitar-me em sua calma macia e amparar minha inquietude silente
Deixar-me, nas conversas vazias, provocar todo seu ego discretamente
Eu lhe convido a olhar a imensidão reservada pra nós sob o firmamento
Reparar a inutilidade da urgência e da pressa espalhada nos dias
Perceber a grandeza que o amor verdadeiro toma todo detalhe disperso

Eu lhe convido a me dar alguns dos espaços no seu relógio parado
Sairmos os dois das linhas traçadas pelo destino cansado
Bailarmos então nossa valsa feita de damurida e carimbó
Eu lhe convido a aproveitar o momento de cada instante e não mais
Só agora guardar um único infinito horizonte mutável
Arregaçar as mangas do tempo e fazê-lo trabalhar pra gente

Eu lhe convido a tirar de mim qualquer pedaço que lhe apeteça
Consumir meus sentimentos todos dentro de suas validades vincendas
Arrancar-me da zona de conforto que, em verdade, sufoca o presente
Eu lhe convido a aproveitarmos a nós, a sós, só hoje
E quem sabe assim você descubra que lhe convém
Fazer de alguns amanhãs um hoje também

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Da complicada maneira de amar simplesmente.


Não foi de uma das conjecturas formuladas sobre a origem da vida, o big-bang ou o sistema financeiro falido do país
Mas do jeito que você correu pro carro pra não pegar chuva


Não foi de nenhuma jura de compromisso e lealdade ou das convicções sobre relacionamentos no mundo globalizado
Mas da sua cabeça prostrada em meu ombro durante o passeio


Não foi do prato excêntrico que você aprendeu no sul da Malásia e a forma que cortou a carne para manter a suculência
Mas da guerra de dedo que travamos depois do jantar e você venceu


Não foi da crítica de cinema bem construída que elaboramos sobre os filmes de Stanley Kubrick
Mas, durante aquela comédia adolescente, do seu pé roçando no meu


Não foi de um dos longos roteiros possíveis da viagem de nossas vidas
Mas daquela segunda que você cancelou os compromissos para nos vermos


Não foi da inteligência covardemente acima da média inerente a qualquer um de seus comentários
Mas da facilidade com que você ri de toda bobagem que falo



Não foi da complexidade de nenhuma das coisas complexas que surgiu o amor que não sei explicar
Mas da simplicidade de simplesmente estar aqui quando só você poderia estar.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pouco importa



Pouco importa se pouco da vida eu vi
Por quantos países idiotas viajei e se roupas caras comprei
Quanto gastei com os estudos ou se os terminei
Quantos livros empoeirados deixei na prateleira
Pouco importam as palavras sem sentido que falei
As vezes que chorei escondido e se acumulei algum tempo perdido
As músicas que cantei e os porres que peguei
Pouco importa quanto dinheiro eu consegui ou guardei
Como amarrei os sapatos a vida inteira, pouco importa
Pouco importam quantas transas eu transei ou bocas eu beijei
Quantos relógios falsos ficaram na gaveta guardados
Quantos filmes estrangeiros eu assisti para impressionar na conversa de bar
Pouco importa quanto eu tive ou se tudo perdi
Quantas cicatrizes marcaram meu rosto e meus dedos
Pouco importa se as contas estavam em dias e se apaguei as luzes
Pouco importa como vivi ou como parti

Quando as mãos se juntam frias sobre o peito, irmão
Só importam quantas pessoas eu conquistei
Quantas mãos em prece se uniram e quais corações choraram
Importam só as transas que amei e voltaram pra suspirar uma última vez
Quantos amigos desrespeitosos aos meus pés já gelados ainda riem alto a lembrar de mim
Importam mesmo são as conversas que vão ecoar silêncio doloroso sempre que tocarem meu nome
Importa o tempo que gastei socorrendo um amigo, ou quantos vieram ao meu encontro quando precisei
Importa é quem, sem sair de casa, viajou comigo
Importa é se eu aprendi a ser eu mesmo a tempo
Importam quais corações toquei ao falar
Importa só por quem derramei lágrimas mudas ou gritei
Importa quem me escutou cantar e com meus copos pôde brindar
Importa em quantas casas eu podia entrar sem bater
Em quantas almas vou continuar a viver
Em quantos olhos eu olhei e sangram enquanto parto
Importam quantos amores eu deixei, mesmo que sem saber

Quando se batem as portas sobre os olhos fechados, irmão
Só importam quantos homens ficaram lá fora a me olhar e aplaudir.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

O que é paixão?



- O que é paixão? - ela me perguntou.

A pergunta dela quebrando o silêncio me fez perceber que eu já estava ali parado, a olhar aqueles olhos pequenos que me cercavam de calma, por muito tempo. Balbuciei na pressa de dizer algo, mas calei. Não queria quebrar o momento com uma frase apressada e sem sentido. Eu já fazia isso demais e quase nunca a gente tem outra chance de responder a mesma pergunta. Eu também não me senti verdadeiramente obrigado a respondê-la com palavras, porque achei que meu olhar encantado pelo dela e o toque dos meus dedos nos seus cabelos pudessem expressar melhor, seja lá o que eu podia afirmar naquele instante. 

Quando se trata de sentimentos, eu sempre preciso de muito tempo para definí-los por vários motivos. Primeiro porque nunca são iguais a outros que eu já senti. Lógico que eu já havia me apaixonado antes, mas por outras mulheres, em outras idades, enquanto tinha outras contas a pagar. Com ela não haveria de ser igual. Não seria justo que eu usasse a definição que eu já conhecia. Porque nem que só o compasso do coração mudasse, não haveria de ser a paixão por ela a mesma que eu já vivi antes. Também ela, caso se apaixone por mim, se fizer como já fez por outros, não vai me agradar. Que ela tratasse de me arrumar uma loucura nova, um apelido carinhoso inédito, uma comida favorita com outros temperos ou uma posição diferente na cama! Pois das poucas certezas que tenho, uma delas é que eu não quero paixão de segunda mão. 

Outra razão pra eu tardar em tentar definir um sentimento é que ele sempre pode se confundir com a luz e a música que toca na hora de dizer e ficar mais melancólico que realmente é, ou me induzir a usar um vocabulário que condiz com o contexto, mas não com o que eu sinto. Ainda, pode se misturar com outras vontades e necessidades. Impossível imaginar, por exemplo, que alguém pode amar verdadeiramente se está roncando de fome ou com qualquer outra necessidade fisiológica em atraso. Talvez algum mártir por aí possa, tudo bem, mas não faz o meu estilo.

- Vai me enrolar até quando? Há três dias que você prometeu me dizer – trucou-me ela, daquele jeito docemente abusado de quem sabe sempre o quê e quando quer. E o "o quê" até costumava variar, mas o "quando" era sempre agora.


E eu ainda não disse nada. Beijei aquela testa franzida e questionadora e deixei meu olhar cair no dela. Ela silenciou como quem se recusava a começar um novo assunto até pôr fim naquele. E isso sequer me perturbava. 

Paixão, ali naquele segundo, não precisava ser maior que os olhos pequenos dela. Que olhos lindos!